quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A "mordaça" continua

Silenciosamente, as coisas vão acontecendo em nosso Congresso, exatamente no momento em que os vários tubarões do colarinho branco são levados às barras da justiça.

O artigo que segue, de autoria do colega Sérgio Soares (promotor de justiça em MG) e do advogado Rodrigo Alves Barcellos, também de MG.

OS ATAQUES AO MINISTÉRIO PÚBLICO E A NECESSÁRIA REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA DA INSTITUIÇÃO


Rodrigo Alves Barcellos
Advogado em Minas Gerais
Pós-graduado em Direito Público pela PUC-MG
Coordenador Subseccional da Escola Superior da Advocacia


Sérgio Soares da Silveira
Promotor de Justiça - MG


Um tema que vem afligindo parte da comunidade jurídica diz respeito a uma campanha contra o Ministério Público, ardilosamente patrocinada por interesses obscuros, desconhecidos da grande maioria da população brasileira. Trata-se de um movimento que se manifesta através de nefasta intervenção no ordenamento jurídico pátrio, favorecido pela carência de representatividade política da Instituição no Congresso Nacional. Ao nosso modesto sentir, a legislação vem sendo sorrateiramente escrita pelos grandes grupos econômicos e não por legisladores. Muitas leis são elaboradas para atender a setores que se beneficiam da corrupção .

Exemplificativamente, trazemos à baila o Projeto de Lei n. 3.937/2004 ou Projeto de Lei da Câmara n. 06/2009 que tem como foco praticamente excluir a participação do Ministério Público no âmbito do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Como sabemos, trata-se da autarquia vinculada ao Ministério da Justiça cuja finalidade é prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econômica, defender a liberdade de iniciativa, a livre concorrência, a função social da propriedade, defender os consumidores, bem como reprimir o abuso do poderio econômico advindo da formação de holdings, trustes e cartéis. Vejamos a sutil diferença entre a redação atual do artigo da Lei n. 8.884/90 que disciplina a atuação do Ministério Público Federal perante o CADE e como passará a vigorar após a aprovação deste Projeto que tramita em adiantada fase do processo legislativo federal:

TÍTULO III
DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PERANTE O CADE
Art. 12. O Procurador-Geral da República, ouvido o Conselho Superior, designará membro do Ministério Público Federal para, nesta qualidade, oficiar nos processos sujeitos à apreciação do CADE. (Redação atual)
TÍTULO III
DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PERANTE O CADE

Art. 20. O Procurador-Geral da República, ouvido o Conselho Superior, designará membro do Ministério Público Federal para, nesta qualidade, emitir parecer, nos processos administrativos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica, de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator.
Parágrafo único. O CADE poderá requerer ao Ministério Público Federal que promova a execução de seus julgados ou do compromisso, bem como a adoção de medidas judiciais, no exercício da atribuição estabelecida pela alínea b do inciso XIV do art. 6º da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993. (Projeto de Lei)

Logo, se atualmente o Ministério Público Federal oficia preventivamente em todos os processos administrativos sujeitos a apreciação do CADE, com a alteração legislativa proposta, o Parquet emitirá parecer, tão-somente, naqueles procedimentos para imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica, de ofício ou a requerimento do Conselheiro-Relator, o que, além de reduzir em muito as atribuições do Ministério Público, destoa da moderna visão preventiva e resolutiva da instituição ministerial.

De acordo com análise elaborada pela própria Consultoria Jurídica do Senado Federal, dentre outras desvantagens e retrocessos, o Projeto de Lei da Câmara n. 06/2009 propõe: a “redução do papel do Ministério Público Federal, que passa apenas a emitir pareceres em processos que apure infração à ordem econômica, quando hoje ele pode emitir parecer em qualquer tipo de processo”, além da “restrição na atuação do Ministério Público, que já não poderá propor ação civil pública contra atos que ferem a economia popular”.

Espantosamente, a própria página oficial do Conselho Administrativo de Defesa Econômica na internet, às escâncaras, veicula que a Confederação Nacional da Indústria – “CNI apóia o projeto de lei que reforma o CADE”. Indagamos se a pretendida alteração legislativa, sabidamente apoiada pela entidade que representa e congrega os grandes grupos econômicos, também resguarda convenientemente o interesse público primário. Valemo-nos, como resposta, das palavras de Benjamin Disraeli, Primeiro-Ministro da Inglaterra, quando disse que “o Mundo é governado por muitas personagens e é difícil imaginar para quem não vê os bastidores.”

Outro exemplo dessa campanha contra o Ministério Público e, conseqüentemente, contra a sociedade brasileira, é o Projeto de Lei n. 265/2007, de autoria do Deputado Federal Paulo Maluf (PP-SP). Referido projeto busca alterar a Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965, a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 e a Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992, de modo a deixar expressa a responsabilidade de quem ajuíza ação civil pública, ação popular e ação de improbidade administrativa. Em que pese alardeiem seus defensores que o projeto é uma tentativa de inibir as chamadas ações temerárias, percebe-se que em realidade o objetivo da alteração legislativa não é outro senão o de intimidar a atuação dos membros do Ministério Público dos Estados e da União, visto que, coincidentemente, oficiam obrigatoriamente em todas as ações judiciais a que alude este Projeto de Lei, seja como parte ou na qualidade de custos legis, fiscalizando a correta aplicação da lei.

Releva registrar que o apontado Projeto de Lei n. 265/2007 nada mais é que nova tentativa de inserção, no ordenamento jurídico pátrio, de parte da Medida Provisória n. 2.088-35, de 27 de dezembro de 2000, que acrescentou vários parágrafos ao artigo 17 da Lei nº 8.429/92, além de criar nova figura de improbidade administrativa através da adição do inciso VIII ao artigo 11 da LIA, considerando ato de improbidade a propositura de ação civil, criminal ou de improbidade administrativa imputando a outrem fato de que o sabe inocente, bem como a instauração temerária de inquérito policial ou procedimento administrativo. Referida medida provisória também buscou possibilitar que o magistrado, em considerando a imputação manifestamente improcedente e desde que houvesse pedido da parte ré, condenasse ao pagamento de multa, nos mesmos autos, o agente público proponente da ação. Discorrendo quanto a esta situação, assim se posicionou o preclaro ALMEIDA:

O alvo principal do Governo foi certamente o Ministério Público, que é hoje o principal protagonista no combate aos atos de improbidade administrativa no País. A finalidade outra não foi senão a de intimidar a Instituição do Parquet, que estava a incomodar, com as suas investidas incessantes e legítimas contra a corrupção e contra os atos de improbidade administrativa, o poderio econômico dominador.
(...) Certamente em decorrência da pressão social e dos meios de comunicação – os quais pelo menos neste caso atuaram –, o Governo Federal, nas edições seguintes da malsinada medida provisória, acabou por recuar, republicando a medida provisória sem estabelecer a fixação da multa acima transcrita e sem configurar o ajuizamento de ação temerária como ato de improbidade administrativa, eliminando, conseqüentemente, a possibilidade de reconvenção para tais fins, reconhecimento da improbidade do autor da ação e a fixação de multa.


A situação, envolvendo as investidas contra as ações coletivas, o que em realidade poderia ser traduzido como investidas contra o próprio Ministério Público, tem preocupado considerável parte de nossa doutrina, a qual não deixa dúvidas quanto a serem tais afrontas decorrentes do fato de tais ações constituírem poderoso instrumento de defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, aparecendo o Ministério Público no pólo ativo da esmagadora maioria das ações diariamente propostas em nosso País.

A síntese mais evidente do que dizemos é muito bem retratada pela nova redação dada à alínea “e” do inciso II do § 5º do artigo 128, introduzida pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Como que num passe de mágica, suprimem a capacidade eleitoral passiva dos membros do Ministério Público (direito de ser votado). De cristalina inconstitucionalidade material, o objeto da Emenda, direito fundamental por excelência, é cláusula pétrea, logo, insuscetível de ser abolido por meio de reforma constitucional. Daí repercutirmos as precisas lições de Renato Franco de Almeida, Assessor Especial da Coordenadoria de Controle da Constitucionalidade do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, quando enfatiza que:

Fixadas as premissas necessárias, impende reconhecer que a EC n.º 45 – na medida em que abole os direitos políticos dos membros do Parquet – está maculada pela inconstitucionalidade, por extinguir direitos fundamentais através de Poder Constituinte Reformador.

Em compêndio, por se tratar de espécie de direito fundamental, faz-se mister referir que os direitos políticos estão imunes à eliminação por força de reforma que venha a ser operada na Constituição através do Poder Constituinte Derivado ou Reformador, em razão de estarem aqueles confinados no núcleo fixo do texto constitucional.
À guisa de conclusão, lícito se mostra afirmar que, ao contrário do quanto disposto na Resolução n.º 5, de 20 de março de 2006, do Conselho Nacional do Ministério Público, todos os membros do Parquet, independentemente da data de ingresso na Instituição, poderão exercer atividades político-partidárias nos limites que a lei de regência estabelecer, diante da cristalina inconstitucionalidade da alínea “e” do inciso II do § 5º do art. 128 da Constituição da República, na redação ofertada pela Emenda Constitucional n.º 45/2004. (grifamos)

O Deputado Distrital Chico Leite, Procurador de Justiça licenciado, comentando a imposição desta capitis deminutio aos membros do Ministério Público, como que num desabafo, verbera: “Num momento de luta contra a corrupção, tirar da política quem a combate é deixar o caminho livre para os corruptos.”
No mesmo sentido, em recente entrevista concedida ao Jornal Correio Brasiliense, os Presidentes da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais (CNPG) defendem a possibilidade de promotores e procuradores de justiça se licenciarem para concorrerem a cargos eletivos. O presidente da CONAMP, José Carlos Cosenzo, lembra que na época da Constituinte, quando o Ministério Público ganhou mais liberdade para trabalhar sem interferências políticas diretas, a bancada de membros do Ministério Público tinha quinze representantes. Hoje, há apenas três deputados da carreira na ativa: Dimas Ramalho (PPS-SP), Vieira da Cunha (PDT-RS) e Carlos Sampaio (PSDB-SP). No Senado, há um único representante do Ministério Público, o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). "A avaliação sobre o tema já foi dividida no MP. Mas hoje a possibilidade de membros exercerem atividade político-partidária tem apoio da maioria folgada no Ministério Público", avalia Cosenzo. "Estamos perdendo espaço para outras carreiras", acrescenta. "É legítimo que todos os setores da sociedade estejam representados no Congresso", endossa o presidente da ANPR, Antonio Carlos Bigonha.

Chegou o tempo de acordar. Quem está no poder segue com a certeza de que a sociedade está enganada nesta manipulação. A legislação vem sendo imposta com astúcia, sem que nos déssemos conta dos interesses escondidos por detrás das cortinas. É momento de despertar e perceber que setores da política e do mercado manipulam leis, pessoas e instituições com o desiderato de conquistar ou manter seus impérios a qualquer custo. E não é por acaso que o Parquet, defensor da sociedade, é o alvo comum.

Isto posto, avaliamos que para o Ministério Público firmar-se como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal) e ao mesmo tempo evitar possíveis retrocessos institucionais, imperiosa se faz sua efetiva representatividade política, em especial dentro do Congresso Nacional, pois como diz o poeta:

“Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada.”
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Notas e referências bibliográficas:

BARCELLOS, Rodrigo Alves. A Criminalidade no Exercício de Cargos Públicos, Órgão Oficial de Informação do Instituto de Ciências Penais – ICP, Ano III – n. 50, setembro de 2004, p. 4-5.

Jornal do Senado, Ano XV, n. 3.002/214, Ed. Semanal, 20 a 26 de abril, Brasília, p. 7.

http://www.cade.gov.br/Default.aspx?ff33c355ac62b67c8ebb91a5b0, acesso em 05 de maio de 2009.

DISRAELI, Benjamin. The World is governed by very different personages from what is imagined by those who are not behind the scenes, 1844.

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual – São Paulo: Saraiva, 2003, p. 597.

ALMEIDA, Renato Franco de. Atividade político-partidária por membros do Ministério Público: análise da alínea “e” do inciso II do § 5º do artigo 128 na redação da Emenda Constitucional n.º 45/2004. MPMG Jurídico Ano II - n. 8 - janeiro/fevereiro/março de 2007 p. 25-27.

Para Savigny significa diminuição ou enfraquecimento da capacidade. ‘A capitis deminutio media atinge a civitas, alterando, pois, o status civitatis, como por exemplo, no caso do cidadão romano que perde a cidadania, tornando-se peregrino, ou, como no caso dos bandidos, desterrados ou condenados a trabalho perpétuo em obras públicas.’ (CRETELLA JUNIOR. Curso de Direito Romano, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1970, p. 76)

http://www.conamp.org.br/index.php?ID_MATERIA=3062&busca=1, acesso em 09 de março de 2009.

Ibidem.

Vide o documentário ZEITGEIST, junho de 2007. Termo alemão que significa ‘espírito do tempo’.

COSTA, Eduardo Alves da. No Caminho, com Maiakovski. Geração Editorial, 2003.

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