Nos últimos tempos, não raro nos deparamos com notícias de edição de portarias de juízos da infância e juventude impondo restrições à liberdade de jovens, em que pese a Lei 8.069/90 apenas permitir a edição de tais atos visando a regulamentação de situações legalmente já definidas, jamais legitimando a interferência desmedida na esfera privada familiar. Proliferam portarias proibindo a presença de menores em estabelecimentos comerciais após certo horário, ainda que acompanhados de seus pais, quando o ECA é expresso ao dispor que ao juízo da infância e juventude competiria disciplinar por portaria tão somente as situações onde o menor estivesse desacompanhado. A onda do momento é o chamado "toque de recolher", que apresentado sob um discurso protetivo demonstra de forma crua a ação autoritária estatal, eivada de inconstitucionalidade.
Vejamos a seguinte notícia, extraída do portal do Ministério Público do Estado de Minas Gerais na internet:
Portarias que restringem presença de crianças nas ruas se multiplicam pelo País. Conanda divulga parecer contrário e cobra intervenção do Conselho Nacional de Justiça. Promotor de justiça de Patos de Minas questiona implantação da medida no município
A restrição da permanência de crianças e adolescentes nas ruas a determinados horários, conhecida como "toque de recolher", tem se proliferado por vários municípios brasileiros, incluindo algumas cidades mineiras. A questão tem despertado polêmica e já motivou o posicionamento oficial contrário do Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares (FCNCT) e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), cujo parecer foi publicado na última sexta-feira, 18. Os dois documentos classificam a medida como desrespeitosa e retrógrada, por ferirem direitos já garantidos por lei a estes cidadãos.A medida vem sendo implementada a partir de portarias expedidas por juízes, que apresentam motivos como erradicação da violência entre crianças e adolescentes e maior proteção a esses sujeitos. No entanto, autoridades judiciárias e entidades dedicadas aos direitos da infância argumentam que essas decisões ferem direitos, como o de ir e vir e o de ter participação na vida comunitária, previstos pelo artigo 5º da Constituição Federal e pelo artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Na nota em que se manifesta de forma contrária ao toque de recolher, o Conanda sugere que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) discuta o assunto e oriente as Varas da Infância e da Juventude sobre a ilegalidade e a inconstitucionalidade desse procedimento.Contexto mineiro
Em Patos de Minas, no Alto Paranaíba, o toque de recolher está em vigor desde o dia 16 de junho. O juiz da Vara da Infância e da Juventude, Joamar Gomes Vieira Nunes, expediu uma portaria que limita a circulação de crianças e adolescentes nas ruas até as 23 horas. Para não serem abordados pela equipe de policias militares, conselheiros tutelares e comissários, os jovens devem estar acompanhados dos responsáveis ou portar uma carteira de acesso requerida pelos pais. Segundo a vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Patos de Minas, Maria Helena Brás Brito, foram registradas três ocorrências durante a primeira semana de vigência da medida. "Essa medida tem uma intenção pedagógica. Seu objetivo não é punir crianças e adolescentes, mas advertir e orientar as famílias. Afinal, os pais também devem participar e se conscientizar desse processo", afirma a conselheira. A multa para aqueles que desrespeitarem a norma varia entre 3 e 20 salários mínimos. Inconstitucional
O promotor de justiça da Vara da Infância e da Juventude de Patos de Minas, Jacques Souto Ferreira, é contrário à decisão. "Humilhar e oprimir não é uma maneira eficaz de alcançar crianças e adolescentes que estão em situação de risco, envolvidos em atos de violência", avalia. O promotor entrou com ações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais e expediu um Recurso de Apelação contra a portaria que valida o toque de recolher. De acordo com Jacques Ferreira, a medida fere o artigo 149, parágrafo 2, do ECA, que permite a expedição de portarias por autoridades judiciárias desde que sejam fundamentadas caso a caso, e não a partir de uma determinação geral. "Não foi o que aconteceu em relação ao toque de recolher. O juiz responsável por implementar essa medida ultrapassou seu poder e passou a legislar sozinho, suprimindo as outras instâncias legislativas. Trata-se de uma solução arbitrária", afirma.Medida ilusória
Para o promotor de justiça da infância e da juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo e membro da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude, Luiz Antonio Miguel Ferreira, a medida não vai resolver o problema da violência, apenas disfarçá-lo. De acordo com a nota publicada pela Federação dos Conselhos Tutelares, apenas 0,06% da população jovem está envolvida em atos contra a sociedade. Luiz Antonio destaca ainda que, ao tentar reduzir o índice de atos infracionais cometidos por adolescentes, a decisão afeta toda a população com menos de 18 anos. "Não é justo implementar uma medida para punir meninos e meninas de forma genérica, sendo que apenas uma pequena parcela está envolvida em atos infracionais", critica.O conselheiro do Conanda, Ariel de Castro Alves, interpreta a medida como conservadora e acredita que sua implementação apenas evidencia a falta de políticas públicas consistentes voltadas para a infância e a juventude. "Todos os municípios devem ter programas com educadores sociais que atuem 24 horas fazendo abordagens e trabalhos socioeducativos com crianças e jovens em situação de risco. Não se trata de questão policial e sim social, que deve ser foco do Sistema de Garantia dos Direitos e da Rede de Proteção Social", argumenta. Fonte: Rede Andi Brasil
3 comentários:
Só discordo quanto à posição das entidades de defesa da infância e da adolescência, pois defendem que crianças e adolescentes participem da vida comunitária. Há um grande ranço coletivista aí. Acho que a questão está mais uma vez na intromissão do Estado na esfera privada.
Os brasileiros somos mestres em jogar as coisas nas costas do Estado, e aceitar passivamente sua ingerência em questões eminentemente privadas.
Só para ficar claro: também não concordo com tais medidas, mas por motivos diferentes dos alegados pelas associações de defesa das crianças e adolescentes. Essa associações têm, regra geral, ideais coletivistas.
Como já conversamos anteriormente, muito mais útil seria que as crianças tivessem educação em horário integral, de 8 às 17h, como em qualquer país sério. Utopia?
Abração.
Do juiz de Direito Gerivaldo Neiva, da Comarca de Conceição do Coité (BA), ao comentar em seu blog recente decisão do CNJ sobre o "toque de recolher" de adolescentes:
O conselheiro do CNJ, Ives Gandra Martins Filho, negou o pedido liminar contra as portarias que estabeleceram o toque de recolher de adolescentes em algumas cidades do Brasil, sob alegação de que a “experiência está demonstrando o caráter salutar das medidas adotadas, devolvendo o sono aos pais e contribuindo para a não deformação dos jovens, em defesa de seu próprio interesse". Disse ainda o conselheiro, segundo notícia no site do CNJ, que o “direito de ir e vir do menor não é absoluto.”
Sendo assim, segundo o conselheiro, o sono dos pais tem mais valor do que o Estatuto da Criança e do Adolescente, do que a Constituição Federal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica e vale mais ainda do que o próprio Estado Democrático de Direito. Confira...
Sendo assim, segundo o conselheiro, os jovens não são mais formados em escolas de qualidade, mas são proibidos de circularem livremente para que não se deformem, ou seja, a deformação é como uma doença contagiosa que se contrai nas ruas e não por ausência de políticas públicas de formação e acolhimento dos jovens.
Sendo assim, por fim, segundo o conselheiro, o “menor” não é pessoa humana e nem cidadão, pois seu direito de ir e vir não é absoluto...
Aliás, quem são esses pais que agora podem dormir e quem são esses jovens que se “deformam” nas ruas e, portanto, não podem ter como absoluto o direito de ir e vir?
Certamente não tem como nome de família “Gandra Martins”, mas “dos Santos” ou “de Jesus” ou não se lembra...
Certamente não estão nas pizzarias e restaurantes das cidades ou nos carros que param nos semáforos, mas à espera de uma fatia de pizza enquanto “guardam” os carros ou fazendo malabarismo no sinal fechado à espera de uma moeda.
De fato, os pais desses adolescentes precisam dormir, pois precisam acordar às 4h e levar mais duas horas de ônibus e de trem para chegar ao batente. Não sabem a dimensão política e nem jurídica, mas estão de acordo com o apartheid, digo, toque de recolher, imposto aos seus filhos.
Esses pais podem até dormir em paz, mas para o sono eterno de tantos quantos deram a própria vida pela liberdade e pela democracia, ferir a Constituição e as conquistas históricas da humanidade para esconder as mazelas de uma sociedade baseada no consumo e na exploração é um verdadeiro pesadelo.
Eu não quero a falsa tranquilidade desse sono. Prefiro ficar acordado!
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