sábado, 8 de agosto de 2009

O "toque de recolher" e os limites às portarias dos juízos da infância e juventude

Nos últimos tempos, não raro nos deparamos com notícias de edição de portarias de juízos da infância e juventude impondo restrições à liberdade de jovens, em que pese a Lei 8.069/90 apenas permitir a edição de tais atos visando a regulamentação de situações legalmente já definidas, jamais legitimando a interferência desmedida na esfera privada familiar. Proliferam portarias proibindo a presença de menores em estabelecimentos comerciais após certo horário, ainda que acompanhados de seus pais, quando o ECA é expresso ao dispor que ao juízo da infância e juventude competiria disciplinar por portaria tão somente as situações onde o menor estivesse desacompanhado. A onda do momento é o chamado "toque de recolher", que apresentado sob um discurso protetivo demonstra de forma crua a ação autoritária estatal, eivada de inconstitucionalidade.

Vejamos a seguinte notícia, extraída do portal do Ministério Público do Estado de Minas Gerais na internet:

Portarias que restringem presença de crianças nas ruas se multiplicam pelo País. Conanda divulga parecer contrário e cobra intervenção do Conselho Nacional de Justiça. Promotor de justiça de Patos de Minas questiona implantação da medida no município

A restrição da permanência de crianças e adolescentes nas ruas a determinados horários, conhecida como "toque de recolher", tem se proliferado por vários municípios brasileiros, incluindo algumas cidades mineiras. A questão tem despertado polêmica e já motivou o posicionamento oficial contrário do Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares (FCNCT) e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), cujo parecer foi publicado na última sexta-feira, 18. Os dois documentos classificam a medida como desrespeitosa e retrógrada, por ferirem direitos já garantidos por lei a estes cidadãos.A medida vem sendo implementada a partir de portarias expedidas por juízes, que apresentam motivos como erradicação da violência entre crianças e adolescentes e maior proteção a esses sujeitos. No entanto, autoridades judiciárias e entidades dedicadas aos direitos da infância argumentam que essas decisões ferem direitos, como o de ir e vir e o de ter participação na vida comunitária, previstos pelo artigo 5º da Constituição Federal e pelo artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Na nota em que se manifesta de forma contrária ao toque de recolher, o Conanda sugere que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) discuta o assunto e oriente as Varas da Infância e da Juventude sobre a ilegalidade e a inconstitucionalidade desse procedimento.Contexto mineiro
Em Patos de Minas, no Alto Paranaíba, o toque de recolher está em vigor desde o dia 16 de junho. O juiz da Vara da Infância e da Juventude, Joamar Gomes Vieira Nunes, expediu uma portaria que limita a circulação de crianças e adolescentes nas ruas até as 23 horas. Para não serem abordados pela equipe de policias militares, conselheiros tutelares e comissários, os jovens devem estar acompanhados dos responsáveis ou portar uma carteira de acesso requerida pelos pais. Segundo a vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Patos de Minas, Maria Helena Brás Brito, foram registradas três ocorrências durante a primeira semana de vigência da medida. "Essa medida tem uma intenção pedagógica. Seu objetivo não é punir crianças e adolescentes, mas advertir e orientar as famílias. Afinal, os pais também devem participar e se conscientizar desse processo", afirma a conselheira. A multa para aqueles que desrespeitarem a norma varia entre 3 e 20 salários mínimos. Inconstitucional
O promotor de justiça da Vara da Infância e da Juventude de Patos de Minas, Jacques Souto Ferreira, é contrário à decisão. "Humilhar e oprimir não é uma maneira eficaz de alcançar crianças e adolescentes que estão em situação de risco, envolvidos em atos de violência", avalia. O promotor entrou com ações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na Corregedoria Geral de Justiça de Minas Gerais e expediu um Recurso de Apelação contra a portaria que valida o toque de recolher. De acordo com Jacques Ferreira, a medida fere o artigo 149, parágrafo 2, do ECA, que permite a expedição de portarias por autoridades judiciárias desde que sejam fundamentadas caso a caso, e não a partir de uma determinação geral. "Não foi o que aconteceu em relação ao toque de recolher. O juiz responsável por implementar essa medida ultrapassou seu poder e passou a legislar sozinho, suprimindo as outras instâncias legislativas. Trata-se de uma solução arbitrária", afirma.Medida ilusória
Para o promotor de justiça da infância e da juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo e membro da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude, Luiz Antonio Miguel Ferreira, a medida não vai resolver o problema da violência, apenas disfarçá-lo. De acordo com a nota publicada pela Federação dos Conselhos Tutelares, apenas 0,06% da população jovem está envolvida em atos contra a sociedade. Luiz Antonio destaca ainda que, ao tentar reduzir o índice de atos infracionais cometidos por adolescentes, a decisão afeta toda a população com menos de 18 anos. "Não é justo implementar uma medida para punir meninos e meninas de forma genérica, sendo que apenas uma pequena parcela está envolvida em atos infracionais", critica.O conselheiro do Conanda, Ariel de Castro Alves, interpreta a medida como conservadora e acredita que sua implementação apenas evidencia a falta de políticas públicas consistentes voltadas para a infância e a juventude. "Todos os municípios devem ter programas com educadores sociais que atuem 24 horas fazendo abordagens e trabalhos socioeducativos com crianças e jovens em situação de risco. Não se trata de questão policial e sim social, que deve ser foco do Sistema de Garantia dos Direitos e da Rede de Proteção Social", argumenta. Fonte: Rede Andi Brasil

3 comentários:

Carlos Vinicius disse...

Só discordo quanto à posição das entidades de defesa da infância e da adolescência, pois defendem que crianças e adolescentes participem da vida comunitária. Há um grande ranço coletivista aí. Acho que a questão está mais uma vez na intromissão do Estado na esfera privada.

Os brasileiros somos mestres em jogar as coisas nas costas do Estado, e aceitar passivamente sua ingerência em questões eminentemente privadas.

Só para ficar claro: também não concordo com tais medidas, mas por motivos diferentes dos alegados pelas associações de defesa das crianças e adolescentes. Essa associações têm, regra geral, ideais coletivistas.

Como já conversamos anteriormente, muito mais útil seria que as crianças tivessem educação em horário integral, de 8 às 17h, como em qualquer país sério. Utopia?

Abração.

Sérgio Soares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sérgio Soares disse...

Do juiz de Direito Gerivaldo Neiva, da Comarca de Conceição do Coité (BA), ao comentar em seu blog recente decisão do CNJ sobre o "toque de recolher" de adolescentes:

O conselheiro do CNJ, Ives Gandra Martins Filho, negou o pedido liminar contra as portarias que estabeleceram o toque de recolher de adolescentes em algumas cidades do Brasil, sob alegação de que a “experiência está demonstrando o caráter salutar das medidas adotadas, devolvendo o sono aos pais e contribuindo para a não deformação dos jovens, em defesa de seu próprio interesse". Disse ainda o conselheiro, segundo notícia no site do CNJ, que o “direito de ir e vir do menor não é absoluto.”

Sendo assim, segundo o conselheiro, o sono dos pais tem mais valor do que o Estatuto da Criança e do Adolescente, do que a Constituição Federal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica e vale mais ainda do que o próprio Estado Democrático de Direito. Confira...

Sendo assim, segundo o conselheiro, os jovens não são mais formados em escolas de qualidade, mas são proibidos de circularem livremente para que não se deformem, ou seja, a deformação é como uma doença contagiosa que se contrai nas ruas e não por ausência de políticas públicas de formação e acolhimento dos jovens.

Sendo assim, por fim, segundo o conselheiro, o “menor” não é pessoa humana e nem cidadão, pois seu direito de ir e vir não é absoluto...

Aliás, quem são esses pais que agora podem dormir e quem são esses jovens que se “deformam” nas ruas e, portanto, não podem ter como absoluto o direito de ir e vir?

Certamente não tem como nome de família “Gandra Martins”, mas “dos Santos” ou “de Jesus” ou não se lembra...

Certamente não estão nas pizzarias e restaurantes das cidades ou nos carros que param nos semáforos, mas à espera de uma fatia de pizza enquanto “guardam” os carros ou fazendo malabarismo no sinal fechado à espera de uma moeda.

De fato, os pais desses adolescentes precisam dormir, pois precisam acordar às 4h e levar mais duas horas de ônibus e de trem para chegar ao batente. Não sabem a dimensão política e nem jurídica, mas estão de acordo com o apartheid, digo, toque de recolher, imposto aos seus filhos.

Esses pais podem até dormir em paz, mas para o sono eterno de tantos quantos deram a própria vida pela liberdade e pela democracia, ferir a Constituição e as conquistas históricas da humanidade para esconder as mazelas de uma sociedade baseada no consumo e na exploração é um verdadeiro pesadelo.

Eu não quero a falsa tranquilidade desse sono. Prefiro ficar acordado!