quarta-feira, 26 de agosto de 2009

STF julga que R$ 10 mil é bagatela. MPF discorda

Esse é o problema de se importar teorias aplicadas em países do Primeiro Mundo. Esquecem os acadêmicos que estamos no Brasil, talvez o país mais irrazoável do mundo.

Segue a notícia.

STF julga que R$ 10 mil é bagatela. MPF discorda


A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu por 4 votos a 1, no último dia 18, ao julgar dois habeas corpus, que é possível aplicar o princípio da insignificância (bagatela) para arquivar processos criminais de descaminho (importação de produtos lícitos sem o pagamento de impostos) nos quais o montante de tributos devido seja igual ou inferior à R$ 10 mil. Setores do MPF discordam frontalmente da decisão. Em entrevista a Terra Magazine (leia mais abaixo), o procurador regional da República Douglas Fischer disse que a decisão é um "equívoco" e "um incentivo ao crime".

Na decisão do STF, votaram com o relator Carlos Ayres Brito, os ministros Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia e Carlos Alberto Menezes Direito. Para o relator, apesar de a conduta de trazer produtos de outros países sem pagar impostos ser um crime, se a administração pública não cobra os impostos do acusado, não há que se mobilizar o judiciário nesses casos.


A decisão foi baseada no artigo 20, da lei 10.522/02, que prevê o arquivamento dos autos de execuções fiscais (processos de cobrança de impostos) de débitos inscritos como dívida ativa da União, ou por ela cobrados, de até R$ 10 mil. O voto vencido foi do ministro Marco Aurélio de Mello, que disse haver interesse da sociedade na persecução desses casos, principalmente em virtude do largo uso da fronteira com o Paraguai para a prática.

A primeira turma julgava dois HCs (99594 e 94058). Um em processo de descaminho contra um sacoleiro preso em um ônibus vindo do Paraguai, que teve R$ 3 mil em mercadorias apreendidos, e outro de um homem flagrado com 728 pacotes de cigarro, acusado de contrabando, que resultariam em impostos de R$ 3,8 mil.

Descaminho é o outro nome do contrabando, ambos os crimes são previstos no mesmo artigo 334 do Código Penal. Descaminho é a importação de produtos cuja venda é permitida no Brasil, como uma bolsa, um aparelho de som, etc. Contrabando é trazer de outro país um produto cuja importação é proibida, caso de cigarros e armas, por exemplo.

A recente decisão está sendo discutida no Ministério Público Federal, onde muitos procuradores discordam do posicionamento do STF. Um dos maiores especialistas do MPF sobre crimes fazendários, o procurador regional da República Douglas Fischer, que atua em Porto Alegre, na Procuradoria Regional da República da 4ª Região, diz que a decisão é equivocada e, apesar de não ser vinculante, é uma "carta branca para o sujeito praticar crimes". Membro da instituição desde 1996, Fischer é mestre em Direito pela PUC-RS, coordenador da pós-graduação em Direito Penal da Escola de Ensino Superior Verbo Jurídico e escreveu justamente sobre o tema da insignificância para o livro "Garantismo Penal Integral", uma coletânea de artigos jurídicos, que será publicada em breve.

Além de Fischer, já discordou publicamente da tese do STF a procuradora regional da República Janice Ascari, que atua em São Paulo. Ela disse a Terra Magazine que vai continuar recorrendo em todos os casos que a ela forem distribuídos em que os juízes de primeira instância vierem a aplicar o mesmo princípio do STF.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Fischer concedeu a Terra Magazine:

Terra Magazine - Como procurador da República, que atua na área criminal, como o senhor entende que vá impactar essa decisão do STF, na prática, nas ruas, especialmente, nas fronteiras do país?

Douglas Fischer - Eu não tenho dúvida que essa decisão do STF é absolutamente equivocada. Primeiro porque tu não pode utilizar essa regra que eles estão utilizando, como se fosse isso que determina a questão da insignificância penal para determinar se uma conduta é ou não é crime. Tu não pode considerar apenas e isoladamente o valor. E segundo, o valor utilizado, de R$ 10 mil, é um valor que a Fazenda Nacional tem como parâmetro para não cobrar, momentaneamente, e judicialmente, os créditos da União. Então, eles continuam cobrando administrativamente. Porque não cobram judicialmente? Porque é extremamente mais caro entrar em juízo para receber R$ 10 mil, porque vão gastar 11, 12, 13 para receber 10 mil, ou seja, não compensa, mas o dano causado houve e isso é indiscutível.

Do jeito que está, vai se dar não só um incentivo para a prática de contrabando e descaminho nas fronteiras, como também um incentivo a sonegação fiscal, porque eles estão começando a dar os precedentes a serem aplicados nos crimes de sonegação de tributos. Então, eu poderei praticar vários crimes de sonegações de tributos, desde que, separadamente, sejam de R$ 9 mil, e esses fatos serão todos considerados não-crimes. Isso é um absurdo na realidade do Brasil. O STF está dizendo: 'senhor descaminhador, vá a fronteira e traga R$ 19.999 de mercadorias todos os dias, R$ 600 mil todo mês de mercadoria, o senhor não vai pagar imposto, o senhor vai vender dentro do mercado nacional, vai gerar concorrência para quem paga o tributo legalmente como uma suposta conduta que não é crime'. É dizer: 'pode reiterar a conduta que estará com um salvo conduto'. E essa regra é um incentivo à criminalidade. E se o STF aplica esse critério para os crimes de descaminho, ele tem que aplicar para todos os crimes também, como furto, estelionato. Isso é o que eu chamo de decisionismo. Não tem critério jurídico racional.

Essa lei 10.522, que eles invocam, diz o seguinte: 'se eu ultrapassar R$ 10 mil, por outros fatos, eu executo judicialmente'. Eles esquecem disso, fazendo uma interpretação completamente capenga, para gerar essa situação. E isso é um incentivo à prática criminal. Direito Penal não é isso. Em qualquer lugar do mundo não é assim que se faz. O sujeito furta, que é crime sem violência, R$ 100, sei lá, do Daniel Dantas. Aí você pesa que ele (o ladrão) precisava se alimentar, tava numa situação falimentar, e que o prejuízo de R$ 100 para o Dantas é irrelevante. Agora, se ele começa a furtar R$ 100 de um, R$ 100 de outro, R$ 100 de outro, isso é insignificante? Eu posso dar autorização para ele sair furtando valores pequenos? A jurisprudência do Supremo não aceita isso, mas eles só falam isso em crimes contra o patrimônio privado, não falam em crime contra o patrimônio público. Ou seja, contra o patrimônio da 'viúva' vale tudo.

Isso tá no patamar da irracionalidade jurídica. E isso já está sendo aplicado nos tribunais, no crime de apropriação indébita de contribuição previdenciária. E eles estão esquecendo também das leis dos crimes de menor potencial ofensivo, pois são crimes que tem pena mínima de um ano e que o sujeito, não necessariamente, vai responder com pena de prisão, ele faz um acordo e presta serviços. Eles estão aniquilando essa lei, dizendo que R$ 10 mil é insignificante, não interessa. E esses sujeitos que estavam prestando serviços à comunidade, eles simplesmente estão livres. Ou seja, não vão mais prestar serviços à comunidade e o máximo que pode te acontecer, se te pegarem, é tu perder as tuas mercadorias, mas tu pode continuar fazendo, desde que até R$ 10 mil. Os ministros do Supremo não estão se dando conta da questão macro. Estão olhando para uma questão mínima, isolada, e não vêem as consequências dessa decisão. E um Tribunal Constitucional não pode deixar de ver as consequências políticas e sociais de suas decisões. A sociedade não está sabendo disso.

A decisão de uma turma em um HC é vinculante?

Não é vinculante.

O MPF não deve segui-la, então.

O MPF não segue. Quem fala pelo MPF é o Procurador Geral da República, mas eu posso te dizer que alguns colegas até abrem esse precedente, mas é minoritário. Nao é uma decisão vinculativa, mas é uma tendência do STF que pode acabar se pacificando. Depois que pacificar assim, não volta atrás. Mas eu parto do princípio, que se for aplicar os R$ 10 mil para descaminho, vamos que ter aplicar para todo mundo. Tem sentido, não tem? E na hora que diz que vale para um crime e não vale para outro, isso é um decisionismo. Se uma teoria vale para um lado e não vale para outro, isso é desicionismo.

Como um argumento de processo de execução fiscal, que é do direito administrativo, pode ter impacto na esfera penal e gerar uma decisão como essa?

Isso só existe no Brasil. Em nenhum lugar do mundo se utiliza a base de execução fiscal para se determinar o que é insignificante penalmente. A insignificância penal é a conduta absolutamente irrisória. Por exemplo, o cara que vai para a fronteira e só pode trazer US$ 300, ele vai e traz US$ 340. Isso é insignificante. O STJ também discutiu essa matéria e a 3ª Seção do STJ estabeleceu outro parâmetro: R$ 100 é insignificante (embargos de divergência no recurso especial 966077-GO, em 20 de agosto de 2009).

O ministro Marco Aurélio Mello foi o voto dissonante no julgamento dos HCs. Ele diz que há interesse social na persecução ao contrabando e descaminho, principalmente em relação aos que ocorrem com produtos trazidos de países vizinhos, pois a prática é constante. Essa é a questão mais importante no combate ao descaminho?

É um dos pontos a serem levados em consideração, mas não é o único. Isso influencia a ordem econômica no Brasil. Então, inteira razão ao ministro Marco Aurélio. Se o sujeito praticou o crime, pagou R$ 40, R$ 50 de imposto, uma vez só na vida, o direito penal não é para isso, então aplica-se a insignificância. Mas o que eles estão fazendo, é dar uma carta branca para o sujeito praticar crimes, um salvo-conduto, desde que não ultrapasse, individualmente, R$ 10 mil.

Têm tido grande impacto na mídia e na sociedade grandes operações contra descaminho, como o caso Daslu, o caso Cisco, o da Teresa Bulhões. Esses casos, seguindo a linha do STF, não são suficientes para servir de exemplo social, para demonstrar que descaminho é crime?

Não. O descaminho tem pena de 1 a 5 anos. Os casos menores tem que ter pena baixa. Casos Daslu e outros graves devem ter pena proporcional ao crime, bem maior, mas, de outro lado, não podem deixar de aplicar para os outros e dar a sensação de que eles podem continuar praticando. E o crime de descaminho é eminentemente praticado desse modo (em poucas quantidades). Tem que punir os casos grandes, mas tem que punir os menores também, se forem relevantes.

Fonte: Terra Magazine

Um comentário:

Sérgio Soares disse...

Discordo totalmente do alcance dado pelo STF ao crime de bagatela, fixando um alto valor como teto para consideração da ocorrrência de crime tributário. Creio que em um país de tantas desiguladades, pessoas passando por privações básicas, um crime contra o erário deveria ser tratado, pelo contrário, com muito mais rigor.
É uma pena que os senhores ministros dos tribunais superiores não sejam obrigados a visitarem, mensalmente, estabelecimentos prisionais, como o são os magistrados em primeiro grau e promotores de justiça.
Queria ver como explicariam por qual motivo quem furta bicicleta, atingindo o patrimônio particular, é preso, processado e condenado, e quem sonega impostos, atingindo o patrimônio público, no valor de até R$10.000,00 se vê livre do processo.
Como diria Gérson, o canhotinha de ouro: "É brincadeira!"