sábado, 1 de agosto de 2009

Reserva de Justiça

Bom dia a todos.

Em minhas leituras jurídicas pelo mundo virtual, há muito procuro ler algo que vá um pouco contra a corrente do que vemos atualmente em matéria de doutrina penal e processual penal brasileira. Refiro-me ao garantismo. Porém, sejamos honestos, temos aqui um "garantismo à brasileira", com princípios próprios, com uma linha de raciocínio sem paralelo no mundo ocidental civilizado. Um garantismo que se preocupa com o princípio da proporcionalidade em apenas uma de suas faces (a da proibição do excesso), mas que simplesmente vira as costas para a outra (a proibição da proteção deficiente). O que me impressiona são pessoas que pretendem ser acadêmicas, ao publicarem obras, repetirem as mesmas palavras, os mesmos chavões etc. (a questão da prisão preventiva, com seus pressupostos e requisitos, é emblemática). Não há o mínimo senso crítico, fundamental no mundo científico.

Pois bem, o termo "garantismo à brasileira" não foi cunhado por mim (gostaria muito de tê-lo feito), mas por um juiz federal chamado André Lenart, cujo blog, que apresenta uma visão extremamente crítica sobre o processo penal brasileiro, é de leitura obrigatória (http://reservadejustica.wordpress.com). Todo o senso crítico que afirmei faltar à esmagadora maioria da doutrina brasileira, pode ser encontrado (e com profundidade científica) aqui.

Por isso, peço licença para transcrever o último texto colocado pelo citado autor em seu periódico. Trata de mais um caso de prioridade no processo brasileiro (Lei nº 12008/09), desta vez para idosos (que já possuíam prioridade), deficientes mentais e portadores de moléstias graves, entre outros).

Já se disse alhures, em relação a outro tema (direitos fundamentais - o tema é outro, mas a razão do texto é idêntica), que o dia em que tudo for considerado fundamental, nada mais será fundamental. Parafraseando, no dia em que tudo for prioritário...

Fiquem com o texto de André Lenard.


O Duplipensar do Judiciário: a Lei n. 12.008/09 vista pelas lentes de George Orwell
Publicado por André Lenart em Julho 31, 2009

A terra é o centro do universo. O sol e as estrelas giram em torno dela. [...]

Naturalmente, isso não é verdade para certos propósitos. Quando navegamos no oceano, ou quando predizemos um eclipse, muita vez nos convém supor que a terra rode em torno do sol e que as estrelas estão a milhões de quilômetros de distância. E daí? Imaginas que não podemos produzir um sistema dual de astronomia? As estrelas podem estar longe ou perto, conforme precisarmos. Supões que nossos matemáticos não dão conta do recado? esqueceste do duplipensar?

George Orwell, 1984

Durante a campanha eleitoral, ao ser indagado sobre qual afinal seria a prioridade de seu mandato – segurança pública, emprego ou educação -, um falecido ex-governador do Estado do Rio de Janeiro respondeu com sorridente ar de espanto: “ora, minhas prioridades são todas!”.

O jeito de ser do velho caudilho, que tanto desconcerto causou no repórter, é o jeito de ser do brasileiro. Diante de um impasse, quase sempre buscamos a saída fácil das palavras doces que agradem ao interlocutor. A verdade é circunstancial, feita sob medida para acariciar o ego do público. Afinal, como pacientemente ensina o obcecado e fiel O’Brien à pobre e torturada alma de Winston, no ponto alto do delírio totalitário idealista da fabulosa obra de George Orwell (1): a realidade não passa da expressão do desejo do homem; as leis físicas e lógicas não existem; a realidade externa é um capricho da nossa imaginação.

O mundo jurídico não é avesso, mas antes propenso à sedução idealista – a dicotomia positivista ser/dever-ser bem o demonstra. Talvez o Direito seja dos espelhos mais fidedignos de como a renúncia à realidade se tornou a regra entre nós. Último capítulo dessa tragicomédia – que faria brotar um sorriso mordaz em Boccage – é a Lei n. 12.008, de 29 de julho de 2009, que, tal como o prestidigitador faz com os coelhos, tirou da cartola mais algumas hipóteses de proridade na tramitação de processos.

LEI Nº 12.008, DE 29 DE JULHO DE 2009.

Altera os arts. 1.211-A, 1.211-B e 1.211-C da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, e acrescenta o art. 69-A à Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal, a fim de estender a prioridade na tramitação de procedimentos judiciais e administrativos às pessoas que especifica.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o O art. 1.211-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1.211-A. Os procedimentos judiciais em que figure como parte ou interessado pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, ou portadora de doença grave, terão prioridade de tramitação em todas as instâncias.

Parágrafo único. (VETADO)” (NR)

Art. 2o O art. 1.211-B da Lei no 5.869, de 1973 – Código de Processo Civil, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1.211-B. A pessoa interessada na obtenção do benefício, juntando prova de sua condição, deverá requerê-lo à autoridade judiciária competente para decidir o feito, que determinará ao cartório do juízo as providências a serem cumpridas.

§ 1o Deferida a prioridade, os autos receberão identificação própria que evidencie o regime de tramitação prioritária.

§ 2o (VETADO)

§ 3o (VETADO)” (NR)

Art. 3o O art. 1.211-C da Lei no 5.869, de 1973 – Código de Processo Civil, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1.211-C. Concedida a prioridade, essa não cessará com a morte do beneficiado, estendendo-se em favor do cônjuge supérstite, companheiro ou companheira, em união estável.” (NR)

Art. 4o A Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 69-A:

“Art. 69-A. Terão prioridade na tramitação, em qualquer órgão ou instância, os procedimentos administrativos em que figure como parte ou interessado:

I – pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos;

II – pessoa portadora de deficiência, física ou mental;

III – (VETADO)

IV – pessoa portadora de tuberculose ativa, esclerose múltipla, neoplasia maligna, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome de imunodeficiência adquirida, ou outra doença grave, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída após o início do processo.

§ 1o A pessoa interessada na obtenção do benefício, juntando prova de sua condição, deverá requerê-lo à autoridade administrativa competente, que determinará as providências a serem cumpridas.

§ 2o Deferida a prioridade, os autos receberão identificação própria que evidencie o regime de tramitação prioritária.

§ 3o (VETADO)

§ 4o (VETADO)

Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 29 de julho de 2009; 188o da Independência e 121o da República.

Agora bem. Considerando-se, de um lado, as leis editadas pelo Parlamento e, de outro, regulamentos, resoluções, recomendações e solicitações vindas de órgãos administrativos – Conselho Nacional de Justiça, Conselho da Justiça Federal, Tribunais Regionais Federais e respectivas ouvidorias e instâncias correicionais -, pode-se dizer que os seguintes processos gozam de preferência na Justiça Federal (2):

1. Processos de habeas corpus;

2. Processos penais com réu preso;

3. Processos penais à beira da prescrição;

4. Processos penais de alta relevância social (crimes violentos, crimes contra o sistema financeiro nacional, crimes de lavagem de dinheiro ou envolvendo organização criminosa, etc);

5. Processos penais de competência do júri;

6. Procedimentos penais cautelares (interceptação, busca e apreensão, etc)

7. Cumprimento de cartas precatórias criminais;

8. Cumprimento de cartas de ordem criminais;

9. Cumprimento de cartas rogatórias;

10. Mandados de segurança com pedido de liminar;

11. Mandados de segurança em geral (o novo projeto de LC prevê, se não me engano, sentença em 30 dias);

12. “Ações” populares;

13. “Ações” civis públicas;

14. Procedimentos por improbidade administrativa;

15. Processos com pedido de tutela antecipada;

16. Processos com audiência realizada;

17. Processos parados há mais de 120 dias;

18. Processos com conclusão antiga;

19. Processos a cujo respeito haja solicitação de preferência vinda de Corregedoria

20. Processos a cujo respeito haja solicitação de preferência vinda de Ouvidoria;

21. Procedimentos cautelares;

22. Processos em que figure com parte ou interessado maior de 60 anos;

23. Processos em que figure como parte ou interessado deficiente físico ou mental;

24. Processos em que figure como parte ou interessado portador de moléstia grave;

25. Processos iniciados antes de 2005 – o CNJ disse que todos deverão ser julgadas até o final de 2009…

Pois então, pergunto: em meio a esse pandêmonio de leis e regulamentos que se sobrepõem e contraditam, quem se arrisca a dizer quais processos NÃO SÃO PRIORITÁRIOS?

Pior: à falta de parâmetros objetivos, como estabelecer uma gradação racional de “prioridades” – presumindo que a tarefa seja exequível – ? Um HC com pedido de liminar vale mais do que um processo tributário iniciado antes de 2005 ou do que um outro cuja conclusão ultrapasse 120 dias? Um processo criminal com risco de prescrição deve receber mais atenção do que um mandado de segurança (com ou sem pedido de liminar) ? E se o impetrante foi incapaz ou existir solicitação de alguma ouvidoria? Nessa última hipótese, a interceptação telefônica terá preferência? A ação civil pública e a ação popular são mais relevantes do que um processo movido por portador de moléstia grave? E um processo cujo autor seja maior de 60 anos? Gozará de “mais prioridade” do que um outro cujo autor seja deficiente físico? Numa Vara Federal Previdenciária, na qual 90% – ou mais – das demandas são concernentes a idosos, como será estabelecida a “prioridade” entre os “prioritários”? No par e ímpar, na moedinha, pelo nome do autor?

Esse breviário basta para demonstrar o rematado absurdo que a Lei n. 12.008 e as que lhe antecederam – assim como os atos administrativos que conferem “prioridade” descontextualizada ao julgamento de certas matérias ou processos – representam. Trata-se de (mais) uma promessa vazia e inconsequente que o Judiciário não será capaz de cumprir. Trata-se de mais um fator de desgaste aos olhos da opinião pública(da). Mas será que alguém se preocupa com isso? Será que alguém que conheça a fundo como as coisa são – e funcionam – acredita realmente na aplicação dessa lei? Duvido muito. O que interessa é sempre a versão, nunca os fatos. As pessoas supostamente abençoadas pela boa sorte não têm a mínima ideia de como se movem as engrenagens da burocracia. Alguém irá à televisão e lhes anunciará a “nova era de prosperidade” – processos à velocidade da luz, com sentenças a jato, para ontem. Por algum tempo, eles acreditarão e ficarão felizes. Depois, cairão em si. Pouco importa o que (não) irá acontecer. É assim que funciona no Brasil: não se pensa nem se planeja; votam-se leis de inopino sem nenhuma preocupação quanto à sua exequibilidade. Se der para aplicar, ótimo! Se não der, ninguém liga.

Talvez O’Brien esteja certo. Talvez o sol gire em torno da Terra por motivos políticos, ou a lei da gravidade – à semelhança das outras leis físicas do séc. XIX – possa ser suspensa ou revogada por um mero ato de vontade do homem. Talvez guerra seja paz, ignorância seja força, consciência seja algo a manipular e a lógica – um dia tão cara ao homem – tenha se tornado pedaço irrelevante e dispensável de um mundo cínico e vazio. Talvez nós devamos aceitar de bom grado contradição e pensamento contraditório – essência do duplipensar -, assim como a taboada em que dois mais dois são cinco.

Não pense! Não questione! Não reclame! Curve-se e aceite: o Grande Irmão sabe o que é melhor para você!

Levantou a vista para o rosto enorme. Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh, mal entendido cruel e desnecessário! Oh, teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra a vitória sobre si mesmo. AMAVA O GRANDE IRMÃO.


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NOTAS:
1. A referência é a 1984, livro cuja leitura é obrigatória não só aos juristas, como também a qualquer um que esteja a ponto de ceder ao apelo surdo da autoridade. O pensamento crítico sintetizado nessa pequena grande obra é inimigo mortal de qualquer tipo de fundamentalismo político, ideológico, jurídico, científico, religioso.

2. Devemos lembrar que boa parte das Varas Federais tem competência mista, isto é, julga todo ou quase todo tipo de matéria – criminal, cível, previdenciária, execução fiscal, etc. Muitas ainda carregam a tiracolo um Juizado Especial Adjunto.

André Lenart.

Um comentário:

Sérgio Soares disse...

Caro Vinícius, na prática me deparo com esta questão de "prioridade", pois além de outras atribuições atuo na área da infância e juventude infracional. Em Leopoldina, lamentavelmente, a infância e juventude é de competência do juiz criminal (o lamentável não é em relação ao magistrado, mas à absoluta impossibilidade de aplicação correta dos princípios norteadores da ação estatal direcionada aos direitos menoristas em uma vara criminal). Ao conversar com o magistrado acerca da possibilidade de realização de audiências com mais agilidade de pauta, recebi dele a seguinte indagação, aqui transcrita de forma livre: "Tudo bem, a infância e juventude é prioritária, mas o que eu faço com os processos de réus presos, de execução penal, as audiências criminais decorrentes de tais feitos, os júris...?"
Eis a situação. Quando há muitas prioridades, algumas acabam deixando de sê-las!
Grande abraço!