quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Direito à saúde vs. direito à liberdade

Peço licença para reproduzir texto publicado no sítio Última Instância (www.ultimainstancia.com.br), da lavra do Dr. Pedro Estavam Serrano. O artigo em questão aborda a proliferação de leis antifumo, analisando serenamente a questão da ingerência do Estado na esfera privada, bem como a ponderação entre os interesses conflitantes (direito à saúde vs. direito à liberdade). O autor procura fugir das verdades absolutas, fazendo um alerta para o perigo da desmesurada intromissão estatal em assuntos particulares, cuja experiência já foi dolorosamente experimentada no Séc. XX, nos regimes totalitários de diversas ideologias, e que foram previstos de maneira espetacular nos romances de Orwell (1984) e Huxley (Admirável Mundo Novo).

Segue o texto.

Lei antifumo: direito à saúde versus direito à liberdade
Pedro Estevam Serrano - 17/09/2009


A Assembleia Legislativa do Paraná aprovou nesta semana lei proibitiva ao fumo em locais fechados, a exemplo do que já ocorrera em São Paulo e no Rio de Janeiro. A legislação começa a ganhar contornos nacionais, já que Minas Gerais, Espírito Santo, Salvador, Goiânia e Belém estão próximos de aprovarem proibições no mesmo sentido. No dia 9 de abril, neste espaço, abordei a polêmica, mas volto ao assunto, diante do preocupante que vicejar no país das bases para a proliferação de leis de rigor extremo como essas.

Imprescindível destacar, primeiramente, que não é cabível fazer a defesa ou apologia do cigarro. Inegável que o cigarro seja uma causa evitável de morte em todo o mundo —embora a poluição do ar seja igualmente evitável, mas não se tomem medidas mais eficazes para combatê-la. Estamos tratando de droga nociva à saúde, por isso, não se pode defender o fumo em ambientes fechados. Mas isso não autoriza o Estado, por meio dos Legislativos estaduais, a impor a restrição ao fumo da forma como tem feito.

E por que? Há dois valores fundamentais previstos em nossa Constituição que se encontram em tensão permanente no caso de legislações desse tipo. Um desses valores é o da preservação da saúde pública; o outro valor é o da liberdade do ser humano, que é o valor que nos preserva do facismo e dos mecanismos mais intensos de apropriação da subjetividade que são próprios do capital contemporâneo. No conflito entre os dois valores, não há dúvidas de que a preservação da saúde deve prevalecer em relação à liberdade, mas no limite do necessário para preservá-la. Ou seja, a pretexto de garantir a saúde, não se pode extinguir o direito à liberdade.

Historicamente, as alternativas de Estado totalitário que tivemos como experiência no século 20, qualquer que tenha sido a posição política e ideológica adotada, têm em comum a pregação ao ser humano de uma forma padrão de viver e alcançar a felicidade. Em contrapartida, toda reflexão filosófica que realizamos como Ocidente tem como pressuposto justamente o contrário: não há como dizer a um cidadão qual a forma mais correta de fazê-lo atingir a felicidade e a alegria, porque cada indivíduo tem em sua subjetividade ideosincrasias que os levam a encontrar a felicidade em caminhos diversos dos demais indivíduos.

Mas todos nós sabemos, e isso é decisivo, que não há como chegar à felicidade sem liberdade. Não é uma condição suficiente para o “ser feliz” haver liberdade, mas é uma condição imprescindível, necessária. Nesse sentido, as pessoas precisam aprender a ter condutas adequadas porque valoram essas condutas, não porque lhes é imposto. Por isso, toda vez que uma conduta é imposta sem fundamento no direito de terceiro a um indivíduo, nós, como Humanidade, perdemos um pouco da chance de sermos felizes.

A preservação da liberdade é um valor tão fundamental que não pode ser secundarizado na discussão sobre a lei antifumo. No caso do cigarro, o valor da liberdade do ser humano está, de um lado, expresso no direito que o não fumante tem de não ter sua integridade física perturbada pela ação de um terceiro, mas, de outro lado, está presente na necessidade de o fumante ter preservado um mínimo de liberdade para fazer uso do cigarro.

Não é justo que uma pessoa acenda um cigarro e bafore sobre um não fumante, incomodando-o, como acontecia há meses atrás em casas noturnas. Lembremo-nos: o limite da liberdade é não poder atingir direitos de terceiros em seu exercício. Mas se a conduta de fumar só atinge aquele que a pratica, o Estado não pode interferir, porque se trata exclusivamente da álea protegida pelo direito fundamental a livre gestão corporal, ou seja, do direito à liberdade de gerir o corpo da forma que melhor lhe aprouver. Não há, assim, instituição ou norma infra-constitucional que possam dizer como o cidadão deve gerir seu corpo.

Ora, é evidente que as leis antifumo que vêm sendo aprovadas Brasil afora são exageradas e ofendem o direito à liberdade dos fumantes, rompendo com a necessária ponderação entre princípios que conformam a regra a ser aplicada. Em algumas situações, permitem que essas pessoas sejam submetidas a humilhações e estigmatização, como se estivessem sendo punidas por anos de desrespeito à saúde pública e à liberdade dos não fumantes. Há um caráter higienista nessas leis, que tende transformar a produção científica sobre a nocividade do cigarro em uma proposição quase que religiosa e absoluta, não condizente com o Estado Democrático de Direito.

As legislações que visam regular o uso do cigarro devem encontrar um limite no qual se preserve a saúde, mas também a liberdade do fumante. Em outras palavras, devem encontrar o ponto de equilíbrio e ponderação entre esses dois valores fundamentais. Por exemplo, permitir o fumo em ambientes coletivos aonde há segregação física e ambiental de espaço, seja por meio de construção de alvenaria ou mesmo por vidro, de forma que o fumante e o não fumante estejam separados um do outro. É bom que se diga: não basta distribuir as mesas, estabelecendo uma fronteira imaginária entre a área de fumantes e a de não fumantes como antes acontecia, mas é preciso criar uma barreira física e ambiental à fumaça.

Ao meu ver, é uma saída razoável para o problema, embora não exclua o combate ao fumo em campanhas de conscientização e educação, pois o direito à informação é também fundamental e previsto em nossa Constituição. Qualquer que seja o resultado desse debate, não se pode esquecer que, por meio da propaganda, a indústria tabagista provocou males à sociedade e deve indenizá-la por isso, porque as pessoas têm o direito de não serem levadas pela máquina de produção de subjetividade do capital a cometer atos contra si próprias.

A noção de aperfeiçoamento das leis e da sociedade deve perdurar sempre, motivando, no caso das leis antifumo, alterações no texto legal para melhor acomodação dos direitos que se encontram em confronto. E, principalmente, para que afastemos o perigoso e implícito caráter higienista que tende a suprimir e a reprimir de forma terminativa o direito das pessoas de gerir o próprio corpo.

Um comentário:

Sérgio Soares disse...

Tema instigante, que já abordamos algumas vezes aqui na Confraria - intromissão estatal na esfera privada e necessidade de limites ao "príncipe".
Muito lúcida a ponderação.