terça-feira, 8 de setembro de 2009

Os hipossuficientes e a taxa de inscrição em concursos públicos

Segue pequeno artigo jurídico de minha autoria, publicado na revista MPMG Jurídico, n. 5, editada pela Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais:

1. Introdução


A Constituição Federal de 1988, no artigo 37, inciso I, estabelece que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”. Por seu turno, o inciso II do mesmo artigo de nossa Magna Carta dispõe que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

Como se percebe, nosso ordenamento constitucional contempla os princípios do amplo acesso aos cargos públicos e da obrigatoriedade do concurso público para a investidura em cargo ou emprego público, demonstrando que a todos se mostra possível a participação no concurso público, desde que restem preenchidos os requisitos legais.

Na lição sempre apurada do preclaro Alexandre de Moraes, existe “um verdadeiro direito de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, sendo o cidadão e o estrangeiro, na forma da lei, verdadeiros agentes do poder, no sentido de ampla possibilidade de participação na administração pública”.

No mesmo sentido temos o posicionamento do ilustre Prof. José Afonso da Silva:

“A Constituição estatui que os cargos, empregos e funções são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei (art. 37, I, cf. EC-19/98). Há aí duas normas e dupla referência à lei. A primeira norma, que reconhece a acessibilidade a todos os brasileiros, é de eficácia contida e aplicabilidade imediata, de sorte que a lei a ela referida não cria o direito previsto, antes o restringe ao prever requisitos para seu exercício. Essa lei está limitada pela própria regra constitucional, de tal forma que os requisitos nela fixados não poderão importar em discriminação de qualquer espécie ou impedir a correta observância do princípio da acessibilidade de todos ao exercício de função administrativa”.

Efetivamente, nosso ordenamento constitucional é expresso ao delinear os parâmetros a serem seguidos pelo legislador infraconstitucional quanto ao acesso aos cargos e empregos públicos, estando este impedido de prever requisitos discriminatórios que venham restringir o acesso ao serviço público, à exceção de situações específicas inerentes a determinadas atividades, como ocorre na limitação de idade para determinados cargos públicos, lícita desde que possa ser justificada pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido, consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal consubstanciado na Súmula nº 683.

2. Da taxa de inscrição como possível restrição à participação no certame

Cumpre-nos analisar, pois, a questão referente à cobrança de taxas de inscrição para a participação em concursos para provimento de cargos e empregos públicos. Por certo, a cobrança da taxa de inscrição, por si só, não macula o princípio da ampla acessibilidade aos cargos e empregos públicos, ou mesmo o princípio da isonomia. Ocorre que, em determinadas situações, a exigência do pagamento da taxa acaba inviabilizando a participação de vários candidatos, como ocorre com os hipossuficientes e desempregados em geral.

Se o concurso público visa a captação para o serviço público dos melhores profissionais, não nos parece coerente a diminuição do número de candidatos por conta de sua impossibilidade em arcar com o pagamento da taxa de inscrição. Haveria, in casu, ofensa ao princípio da ampla acessibilidade e também da isonomia, posto que, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, “a igualdade de todos os brasileiros perante a lei veda exigências meramente discriminatórias, como as relativas ao lugar de nascimento, condições pessoais de fortuna, família, privilégios de classe ou qualquer outra qualificação pessoal”. (grifo meu)

Destarte, a única forma de conciliarmos os princípios do amplo acesso aos cargos e empregos públicos e da isonomia com a exigência do pagamento de taxa de inscrição é a previsão, no edital do concurso público, da isenção do pagamento da taxa para os candidatos hipossuficientes, que comprovarem tal condição no ato da inscrição.

Em Minas Gerais, a Lei nº 13.392/99 estabelece que nos concursos públicos do Estado serão isentos do pagamento da taxa de inscrição os candidatos que comprovarem a condição de desempregados. Referida lei deve servir de parâmetro aos municípios, adotando estes o mesmo posicionamento em relação aos concursos municipais, sob pena de flagrante ofensa aos princípios constitucionais acima citados e imediata atuação do Ministério Público, seja por meio da expedição de recomendação, seja com o uso da ação civil pública.

O Tribunal de Justiça mineiro, em sede de agravo de instrumento interposto pelo Ministério Público Estadual em ação civil pública originária da comarca de Betim, autos nº 1.0027.04.005110-7/001(1), acórdão datado de 23/09/2004, acolheu o posicionamento aqui defendido, em acórdão unânime relatado pelo Desembargador Moreira Diniz, cujo voto transcrevo em parte, a título de ilustração:

“A plausibilidade do direito restou constatada na espécie, através do documento de fl. 20 e do edital de fls. 21/29, os quais demonstram a exigibilidade do pagamento da taxa de inscrição, do valor de R$20,00, o que pode, a princípio, caracterizar lesão ao princípio da isonomia e do amplo acesso aos cargos públicos, conforme manifestado pelo agravante. Tal plausibilidade é clara, na medida em que é fundamento básico de um concurso público o respeito às condições de cada candidato, e a garantia de acesso a todos, indistintamente, adotando a Administração pública as medidas cabíveis para proteger e fazer valer tais princípios.”

3. Conclusão

Compete, pois, ao Ministério Público, na forma do artigo 129, inciso II da Constituição Federal, assegurar que os direitos da população sejam respeitados, impedindo que grande parte dela, carente de recursos financeiros, seja discriminada e alijada da possibilidade de concorrer a empregos ou cargos públicos pelo simples fato de não disporem de recursos para o pagamento da taxa de inscrição do concurso.


4. Bibliografia

1 - Moraes, Alexandre de – Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, São Paulo: Atlas, 2002, p. 822.
2 - Silva, José Afonso da – Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 663.
3 - Meirelles, Hely Lopes – Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1989, p. 373.

Um comentário:

Carlos Vinicius disse...

Muito bom Sérgio.

Além da questão dos hipossuficientes (não apenas desempregados como previu a lei mineira), temos também verdadeira irrazoabilidade no valor de algumas taxas, como no último concurso para notário no RJ, em que foram cobradas taxas de 300,00! Completamente irrazoável e anti-isonômico.

Abração.